Denilson
Cardoso de Araújo
Quando
se adquire certa consciência de mundo, deve-se estar preparado para
ser. Existir em plenitude. “Ser” traz solidão, muitas vezes.
Aprender a ser só, avisou um poeta. Aprender a só ser, retrucou
outro. Aprender a ser, digo eu, sem hamletianas dúvidas. Ser. O que
implica ser adversário do “não ser”. Ser do contra. Contra o
“não ser” que é a mediocrização da sociedade brasileira, a
imbecilização dos adultos, a idiotização dos jovens. E para isso,
imperativo é ser contra a entrega de nossas crianças e adolescentes
ao hedonismo irresponsável. Ser contra pais que empurram filhos ao
sexo precoce. Ser contra a mídia que estimula, o governo que ignora,
a sociedade que se omite.
É
preciso ser contra o fim do amor platônico, romântico aprendizado
que precedia de forma deleitosa e necessária os “vamos aos
finalmentes” nos relacionamentos adolescentes. É preciso ser
contra crianças grávidas de crianças. É preciso ser contra o
“quadradinho de oito”, este último degrau da decadência nossa,
que produz searas de meninas cachorras. Vexame brasileiro que lei
infeliz acelerou quando deu ao funk adjetivo de “patrimônio
cultural”.
De
que adiantam Leis Maria da Penha se a gente permite o adestramento
sexual infantil? Não é difícil ver a conexão entre sexo precoce e
maus tratos. Mulheres que pariram ainda meninas, frequentemente
acabarão em relacionamentos ruinosos que destruirão vidas, suas e
dos filhos. Desenlaces ruidosos, agressões físicas, filhos
selvagens.
Sistema
de dominação perfeito, bolou o status quo: sexo precoce. Não
precisa droga na água, dispensa pílula de diária hipnose.
Hormônios, o próprio corpo produz. Basta ativá-los antes da hora.
Doses cavalares de pornografia, funk da ruína completa, novelas com
periguetes e vagabas de plantão. Tudo sem controle. Afinal, “é
intocável a liberdade de expressão”, e “pais é que devem
orientar seus filhos”. Ora, temos pais zumbis, já antes adestrados
na inércia moral e na frouxidão familiar. Padecem esse
desvirtuamento da liberdade de expressão transformada em licença
para matar. Matar infâncias, destruir inocências, fazer
meninas-monstro, crianças maquiadas como profissionais das calçadas.
O sexo precoce produz gente, mas extermina cidadãos, na mesma
assustadora proporção dos nascimentos.
Atendi
Lorraine, a quem concedo nome que foi moda. Queria ajuda. Beirava 30
anos, talvez, mas desprovida dos encantadores mistérios de Balzac.
Tinha rude vida, inscrita na cara vincada de dores. Falava para
dentro, baixos olhos baços. Bela já fora, se via. À mesa, põe seu
problema. O dente. Faltava-lhe, na frente. De ajuntamento em
ajuntamento desde a adolescência, terminara com 04 filhos, de pais
diferentes. Moradia de favor em casa da derradeira sogra, entulhada
num minúsculo quarto com a prole. Aturava gemidos da amante do
companheiro no quarto ao lado. Humilhação para evitar o debaixo da
ponte. E espancamentos. Ameaças de perder filhos. Um soco
extraiu-lhe o dente cuja falta impedia o sorriso. Ela implorou. Que o
covarde ao menos devolvesse seu dente, eis que, catando-o ao chão,
aos deboches, o sujeito ameaçava atirá-lo na vala fétida. Que
devolvesse, demandava ela, daria jeito de alcançar piedoso dentista
que o colasse no lugar. Mas nessas horas, piedade inexiste. O dente
virou esgoto.
Lorraine
não era cidadã. Um não-ser que desconhecia direitos, Maria da
Penha, ECA, Delegacia da Mulher. A patrulha policial debochou dela,
que briga de casal não era bem vinda. Mas ele me tirou um dente,
rogou, meu olho está roxo, mostrou, há hematomas no braço...
Nada. Agora ali, se arrastando em sandálias de dedo, “descidadã”
completa, depois da caminhada de horas, perdida, sob o vento da
serra. O que pedia? Direitos? Justiça? Não. Queria só repor um
infecto dente na boca.
A
impressão de inutilidade me invadiu. Dente pequeno, perto da grande
desgraça por trás do dente perdido. Para que dente em boca que,
além de frequentar a fome, parecia que jamais resgataria um sorriso?
Com ouvido atento e escolhidas palavras produzi os rasos confortos
possíveis, providenciei os magros encaminhamentos plausíveis, muito
inseguro, que a rede de serviços nossa é uma certa Somália. E ouvi
mais.
Lorraine
tivera filha que ficara com a avó. Desconhecia pai, a hoje
adolescente, nascida de “bonde de baile funk”, esse voraz genitor
de prole tanta. A mãe lamentava a própria juventude cachorra
“rebolando até o chão”. Porque soube que, no círculo vicioso
do exemplo ruim, era a filha muito assídua e necessária ao baile da
comunidade. Brilhava no palco já com seu muito peculiar quadradinho
de oito. Porque dispensava roupa de baixo, disse Lorraine,
envergonhada e perdida... sabendo que cedo seria uma avó triste.
Lorraine,
que hoje é contra o funk, bem assinaria este parágrafo, caso
soubesse escrever. É preciso ser contra este cio dado a crianças
como diversão libertária, e que ao fim das contas é cárcere. É
preciso sair da caverna da inércia e, sob o sol, perceber o mundo
que se racha sob nossos pés em abismos bocarras de mastigar brasis,
engolir futuros, vomitar não-seres.
denilsoncdearaujo.blogspot.com